As janelas do quarto estavam fechadas. Chovia muito. Dali para frente, com a queda de Rose Camen, o vocalista da banda, eu não sabia o que ia acontecer ao certo. Tudo era nebuloso. O futuro de todos e de tudo era incerto. Tudo miragem. Meu ídolo acabara de morrer. A cocaína tinha feito aquilo com Camen, um jovem músico. Estava cotado para o melhor artista do ano. Eu me recolhi aos cadernos de partituras que tinha ganhado do meu avô, mestre Joab. Era aquilo mesmo, muita chuva. Trovões. Relâmpagos. Árvores caindo pela rua. Um cenário apocalíptico acontecendo na minha cara. E eu? Eu ia lendo um a um, os cadernos. Queria me aproximar de Camen pela leitura. Meu astro, meu ídolo, tudo o que ele era para mim esvoaçou-se em farinha branca, dentro de seu nariz. Overdose. Overdose maldita. Artistas não deveriam ter overdose pois isso é doença de mortal. Dose de nada deveria matar. Eu queria crer que se consumia, era porque seria necessário uma dedicação mecânica causada pela droga para acompanhar o trabalho. O velho Rose caiu nessa. O velho Rose era tão inteligente.
Por um momento, pensei estar ao lado do cara, representando, tocando, fazendo as notas voarem por cima da platéia louca. Mas o cara estava morto. O giz que ele usava, a farinha que cheirava, o sexo precário com vadias precárias. Tudo contribuiu para que eu ficasse sozinho, sem Camen. Os cadernos eram tantos, as fantasias eram tantas, os dedos se mexiam, alvoroçados, procuravam uma corda para se arrastarem. A corda era da minha guitarra, tudo automático. Os moldes em pinho, as cordas de nylon, a última corda desafinada. A vida tava perdendo o sentido, não tinha o porquê de cordas fazerem mais sucesso.
A chuva não dava trégua. Era uma guerra com a calha. Mamãe nem se atrevia vir aqui no meu quarto, que fica no sótão. Ela viu a notícia pela manhã. Viu quando o meu Deus saiu dentro de um caixão do prédio da prefeitura de Los Angeles, subiu com a ajuda de homens num carro de bombeiros, e entrou desfilando em uma das muitas avenidas de lá. Nem lembro qual. Não tinha olhos para avenidas, ruas, praças. Los Angeles não podia ter feito isso comigo. Tirasse o meu pai, minha mãe, meu irmão. Mas os cadernos...ah, os cadernos! Não param de me ler, os cadernos. As partituras partidas ao meio pelas lágrimas de desespero que caíam. Borrou tudo, tudo. Depois de um tempo, olhando pela janela, a chuva batia forte. Ainda vi quando um galho acertou a janela. O vidro trincou. Eu caí para trás. Caí chorando. Chorando.
Chorava muito, agoniado. Tragam de volta a minha divindade. Tragam de volta o meu gosto pela vida, a minha vida, o meu quarto. Agora eu preciso me recompor. Já foi, já era. Camen, me ajude a entender esse “ré” trespassando uma clave de “sol”. Que doença será essa? Rose, você era só um cantor. Você não sabia afinar. Você nem sabia tocar nada. O que será que está acontecendo? Porque tantas ambulâncias? Não estou ficando louco, me soltem.
Para onde estão me levando? Nossa, as paredes estão ficando brancas. O chão é macio e tudo cheira a novo. Consigo ler. As notas passam pelos braços dos enfermeiros. Mamãe está ali na cadeira. Mas está chorando. Não entendo essa gente. Chora por tudo. ME LARGUEM!
Dei um sopapo no primeiro enfermeiro. Ele recuou, mas logo precipitou-se com uma seringa pra cima de mim. Todos gritavam. O maior escarcéu. Deviam entender o meu sofrimento. O meu herói tinha sido massacrado por farinha e nem por isso eu estava com ele. Ele precisou de mim e eu não puder dar aconchego, um ombro amigo.
Seguro em uma barra branca, dei de cara com a parede fofa. Logo senti uns estalos no meu peito. Meu corpo se contraía, se retraía. Sempre isso. Um homem branco de branco, Colocava duas chapas sobre o meu peito. Um sujeito de lilás balançava uma das mãos na frente dos meus olhos. Ainda vi quando um gritou:” Nova parada cardíaca!”.
Caí no meio das notas. Os cadernos estavam lá, brincando de ciranda. Iam rodando, rodando, rodando junto comigo. Nos demos as mãos e começamos a rodar, cada nota grunhido o seu som. Algumas passavam brigando e formando solos. Eu ia sorrindo, sorrindo,gostando, até ter um novo desprazer. Meu peito ardido. As chapas queimavam. Cada vez que o branco de branco encostava aquilo em mim, pegava fogo.
Eu não via mais a chuva. Fiquei um tempinho esperando. O som dos pássaros invadia a pequena sala, onde eu me encontrava deitado. Quase esquecera do Camen. Nem ganhou o disco de ouro, nem o de platina, nem o de farinha. Alguns médicos me rodeavam. Mamãe chorando numa poltrona, eu muito suado. Eu sentia o sangue minando pelo nariz. Eu sentia o sangue passando pela boca, caindo pelo pescoço, chegando ao peito, já empapado de sangue.
A chuva ainda estava caindo. Chuva bruta. Chuva forte
O meu quarto não parecia mais estar ali. A lua vinha ganhando forma de pêra em vez de de lua mesmo. Minhas mãos tremiam. A coragem bateu. Tudo iluminado. Estava suando muito novamente. Mamãe nem tinha subido. A chuva era tão forte que tinha entrado e alagado todo o sótão. Foi tudo questão de tempo. A dose, a seringa, a chapa, o doutor, a mamãe, Camen.
Sem nenhum motivo aparente, dei de ombros e voltei aos cadernos. O remédio estava fazendo efeito.
0 comentários:
Postar um comentário